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Traduções da Bíblia aposentam vocabulário arcaico e apostam na coloquialidade

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A Nova Versão Transformadora (NVT) eliminou palavras em desuso para traduzir a mensagem bíblica para o leitor contemporâneo

NA LÍNGUA DO POVO
São Jerônimo em seus estudos (1541), do pintor holandês Marinus van Reymerswaele. São Jerônimo concebeu a Vulgata, a tradução da Bíblia em latim vulgar (Foto: DeAgostini/Getty Images).

Quem conhece bem as Escrituras pode se assustar um pouco ao ler o primeiro versículo do Evangelho de João na Nova versão transformadora (NVT), uma ambiciosa tradução da Bíblia publicada pela editora Mundo Cristão no final do ano passado. “No princípio, aquele que é a Palavra já existia. A Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus”, diz a nova versão do famoso trecho que descreve a encarnação do Cristo, ou do “Verbo”, segundo algumas traduções mais conhecidas. Não é só o “Verbo” que não encarnou nessa nova Bíblia. Nela, não há unidades de medidas como “côvados” (a arca de Noé tinha 300 côvados – 135 metros – de comprimento), pronomes pessoais “tu” e “vós” e palavras como “bem-aventurado”, “néscio”, “ímpio”, “longanimidade” e outros vocábulos poeirentos que só persistem nos sermões de clérigos exaltados. “Uma tradução da Bíblia deve ser fiel ao texto original, mas sua mensagem precisa ser acessível ao leitor contemporâneo. Do contrário, a Bíblia se torna apenas uma relíquia do passado”, diz Daniel Faria, editor de Bíblias da Mundo Cristão. A Nova versão transformadora levou seis anos para ficar pronta. Coordenada pelos biblistas Carlos Osvaldo Cardoso Pinto (morto em 2014) e Estevan Kirchner, uma comissão de 14 eruditos traduziu a Bíblia das línguas originais (hebraico, aramaico e grego) para um português fluido e compreensível a um lusófono de escolaridade média. Mais de 4 mil notas de rodapé contextualizam as passagens e explicam as escolhas dos tradutores. O método de tradução empregado foi a “equivalência dinâmica”, que prima pela transmissão clara das ideias expressas no texto original – uma escolha que pode resultar numa tradução menos literal e pouco obediente à sintaxe bíblica. A maioria das edições da Bíblia opta pela“equivalência formal”, uma tradução literal, palavra por palavra, que mantém a ordem indireta das frases e aquele vocabulário datado e de difícil compreensão. “A NVT foi projetada para atender às exigências de diversos perfis de leitores: especialistas em exegese bíblica, pastores que buscam um texto confiável para fundamentar seus sermões, leigos em busca de inspiração, jovens que querem compreender o que leem”, afirma Mark Carpenter, presidente da Mundo Cristão. Uma versão mais secular da NVT foi publicada pela Sextante com o título O livro da vida. Sem as indicações de capítulos e versículos, os três volumes de O livro da vida formam uma Bíblia menos solene, que pode ser lida como uma obra literária da Antiguidade.

Traduções da Bíblia são tão antigas quanto o próprio texto sagrado. A Torá, a lei judaica, foi vertida para o aramaico no século VI a.C., durante o exílio dos israelitas na Babilônia. No século III a.C., em Alexandria, 72 rabinos trabalharam na Septuaginta, uma tradução grega da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento, para os cristãos) que atendesse à comunidade judaica espalhada pela costa mediterrânea e figurasse na mítica biblioteca da cidade. São Jerônimo (347-420) concebeu a Vulgata, uma tradução das Escrituras para o latim vulgar que se tornou a Bíblia oficial da Igreja Católica. A imprensa de Gutenberg e a Reforma Protestante, que tinha como bandeira colocar o texto sagrado nas mãos e no idioma do povo, ajudaram a multiplicar traduções bíblicas a partir do século XVI. O reformador Martinho Lutero (1483-1546) publicou o Novo Testamento em alemão em 1521 e, com a ajuda de colaboradores, passou a década seguinte trabalhando numa tradução completa das Escrituras. A Bíblia de Lutero, impressa em 1534, foi pioneira da equivalência dinâmica em sua busca por um alemão acessível às camadas populares. Essa tradução contribuiu para unificar dialetos regionais e consolidar a língua alemã moderna. Uma repercussão parecida teve a King James Bible, uma tradução inglesa da Bíblia, de 1611, que consagrou expressões usadas no inglês contemporâneo.

A primeira edição completa – e em um único volume – da Bíblia em português só apareceu em 1819, embora traduções do Antigo e Novo Testamento já fossem publicadas desde o final do século XVII. O principal responsável pela Bíblia em português foi o lusitano João Ferreira de Almeida (1628-1691), pastor da Igreja Reformada Holandesa que pregava para comunidades lusófonas no Oriente. Almeida iniciou a tradução da Bíblia ainda na juventude e publicou o Novo Testamento em 1681. Não conseguiu, porém, concluir a tradução do Antigo Testamento, que foi finalizada pelo pastor holandês Jacobus op den Akker e publicada em 1751. A tradução Almeida, elogiada por sua erudição, é publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) e amplamente aceita por protestantes e católicos. Há duas versões principais: a Almeida revista e corrigida, cujo texto foi consolidado em 1898, e a Almeida revista e atualizada, de 1956. Entre uma edição e outra, o texto sofreu alterações.

Nas últimas décadas, proliferaram traduções cujo objetivo é tornar a Bíblia menos hermética. Na França, um time de 20 biblistas, escritores e poetas uniu seus talentos numa tradução literária das Escrituras. O romancista Emmanuel Carrère traduziu o Evangelho de Marcos. A proposta foi repetida na Noruega e a Bíblia rendeu um best-seller. O rock star literário Karl Ove Knausgård foi um dos tradutores. A Bíblia norueguesa não chama Maria de “virgem”, mas de “jovem”, uma tradução possível da palavra hebraica almah. No Brasil, a Nova tradução na linguagem de hoje (NTLH), de 1988, foi pioneira ao verter a Bíblia para o português coloquial e causou estranhamento nos meios mais conservadores. Muitos fiéis não reconheciam mais os versículos que antes sabiam de cor. Em 2003, o texto da NTLH foi publicado pela Paulinas, uma editora católica. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou, em 2001, uma edição completa da Bíblia, que passou por revisões nos anos seguintes. As Bíblias aprovadas pela CNBB para o consumo do rebanho católico recebem o imprimatur, uma autorização episcopal impressa na página de rosto. O Novo Testamento editado pelos protestantes da Sociedade Bíblica do Brasil recebeu o imprimatur em 1968.

Tradutores costumam se esforçar para não se afastar muito de versões consagradas. Alterações em alguns versículos, porém, são inevitáveis devido a avanços nos estudos acadêmicos da Bíblia, descobertas arqueológicas e interpretação pessoal do tradutor. A Nova versão transformadora oferece uma tradução bem diferente de um dos versículos mais famosos da carta de Paulo aos romanos: “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” virou “Pois todos pecaram e não alcançam o padrão da glória de Deus”. A mudança parece sutil, mas é capaz de render discussões intermináveis entre teólogos. Outro desafio da equivalência dinâmica é traduzir expressões do cotidiano dos antigos hebreus que soam quase cômicas a nossos ouvidos, como “todos que urinam na parede”, que aparece seis vezes no Antigo Testamento e indica virilidade. Bíblias recentes, como a NVT e mesmo a Almeida revista e atualizada, traduziram essa expressão um tanto vulgar como “todos os seus descendentes do sexo masculino”.

SAGRADO E SIMPLES Mark Carpenter e Daniel Faria, o presidente e o editor de Bíblias da Mundo Cristão. Abaixo, a Nova versão transformadora, uma tradução coloquial das Escrituras (Foto: Anna Carolina Negri/ÉPOCA)

Eliminar o ranço eurocêntrico e patriarcal que contaminou as antigas traduções é outra tarefa urgente que se impõe aos tradutores. A NVT eliminou o uso de “homem” como sinônimo de “humanidade”. Jesus não chama mais seus discípulos de “pescadores de homens”, mas “pescadores de gente”. Essa mudança não é apenas um aceno aos novos tempos, mas um sinal de fidelidade à mensagem original. “Alguns tradutores optam pelo gênero masculino quando o original é neutro, o que coloca a mulher numa posição de inferioridade que não se justifica”, diz o biblista Marcelo Carneiro, professor da Faculdade de Teologia de São Paulo. “A palavra ánthropos é muitas vezes traduzida como homem, mas, em grego, o gênero é neutro.” Há casos ainda mais problemáticos. “Há um texto no Cânticos dos cânticos em que uma jovem se descreve como ‘morena’, ou seja, negra, e ‘bela’ e que traduções mais antigas traziam como ‘Eu sou morena, porém formosa’”, diz Marcos Paulo Bailão, também biblista e professor da Faculdade de Teologia de São Paulo. “No entanto, a conjunção hebraica ‘vê’ pode ser tanto aditiva (e) quando adversativa (mas, porém).” Esse tipo de tradução enviesada não depõe contra a cultura que produziu o texto, mas, sim, contra a cultura que optou por traduzi-lo assim.

Até 2018, a Sociedade Bíblica do Brasil lançará a Nova Almeida, uma revisão do texto da Almeida revista e atualizada que eliminará mesóclises, frases demasiado longas, ordem indireta e palavras em desuso. O pronome pessoal “tu” só será mantido quando se referir a Deus. Em abril, a Companhia das Letras publicará uma tradução assinada pelo helenista português Frederico Lourenço, que já verteu os versos de Homero para a língua de Camões. Os 500 anos da Reforma Protestante, a ser comemorados em outubro, são um incentivo a novas edições das Escrituras. “Uma das grandes conquistas da Reforma foi colocar a Bíblia na mão do povo, que passou a ser intérprete do texto e não mais dependente dos sacerdotes”, diz Bailão. “É extremamente importante prover o povo de ferramentas que possibilitem uma leitura mais profunda e com mais liberdade do texto bíblico.”

Em tempo: o “Verbo” se fez “Palavra” porque esta é uma tradução mais precisa de “logos”. Esse é um conceito grego que reúne muitos significados, como razão, fala ou discurso que se faz compreender – que é exatamente o que essas novas traduções almejam.

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